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Memórias de Travessia

Narrativa de percurso pessoal, acadêmico e profissional

ANDRÉ FERNANDES RODRIGUES PEREIRA

Brasília, setembro de 2018

Memórias de Travessia

Narrativa de percurso pessoal, acadêmico e profissional

Memorial Descritivo apresentado à disciplina Seminário de Pesquisa

do Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional e Tecnológica - PROFEPT

ofertado pelo Instituto Federal de Brasília - IFB

Brasília, setembro de 2018

Todos os dias mudamos,
a cada dia morremos,
e ainda,

nos almejamos eternos.
 

São Gerônimo

Apresentação

               Descrever a própria trajetória de vida é um trabalho que revolve a própria natureza em busca de ordem e sentido. Contar com a memória, selecionar realidades acontecidas, elaborar ficções verossímeis. O que é meu, quem sou eu, os caminhos que tracei e os traços que ganhei dos caminhos. O exercício de expor uma narrativa sobre mim faz com que eu fabrique minhas imagens, lance definições possíveis sobre mim, analise as formas que se apresentam e considere o que fica silenciado. Trata-se de um rico processo rumo à autenticidade, que potencializa a reflexividade e esclarece as escolhas. 

         No texto a seguir apresento o meu percurso de vida, selecionando fatos e experiências que considerei relevantes, explicitando as marcas e questões que contam, explicam e justificam a minha história. Construo o texto integrando aprendizagem, trabalho e acontecimentos pessoais, pois a vida não se realiza de maneira fragmentada. Pontuar de forma objetiva apenas a minha experiência profissional seria uma forma de mistificar e obscurecer a realidade, esconder-me atrás da formalidade. Ofereço aqui um pouco do íntimo e sagrado. Entrego uma narrativa simultaneamente histórica e reflexiva em um relato analítico, crítico e possível de quem sou. A travessia que todos somos.

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Primeiros passos

              Nasci em Brasília, com as últimas chuvas que precedem a seca, no anoitecer de uma quarta-feira. Eram os 28 dias de maio de 1987. Estávamos aos anos iniciais da volta do Brasil à sua experiência com a democracia e uma alta inflação castigava a economia brasileira. Também havia a Guerra Fria engendrando o seu fim e surgia o pogobol, brinquedo radical da Estrela. Minha família, classe média, vinda da cidade do Rio de Janeiro, constituída por pai, mãe, irmã mais velha e uma cachorrinha, atravessava o período alheia a esses contextos maiores e sem graves privações financeiras, assegurando-me uma boa vida ali, nas bucólicas quadras residenciais do Plano Piloto. Alguns anos mais tarde vim a descobrir o que era o pogobol e, consequentemente, as escoriações e os hematomas. A perestroika, o plano bresser e os constituintes, só fui conhecer muito tempo depois, e os achei bem menos divertidos que aquele brinquedo que sempre me fazia cair.

           No final de 1987, Brasília foi reconhecida como Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco. Mas a declaração mais bonita que existe para a cidade é essa, sem palavra alguma, mas com muito sentimento, que tenho dentro do meu coração. Brasília é cidade que me marcou em corpo e espírito com suas escalas, letras de blocos, fitofisionomia e amplitude de caminhos em gramados e pilotis. Desde muito pequeno fui observador, menino calmo e aéreo, pensador. Do interior. A cidade, de ritmo provinciano e de modernas urbanidades, deu a mim um ambiente propício à reflexividade enquanto me desafiou às experiências urbi et orbi. Brasília são silêncios e provocações. Rio de Janeiro é agitação de multidão de gentes e nomes de rua, buzinas, asfalto, encontro com parentes e espetáculo de montanhas. O mar é algo para o fim do ano, para o fim do continente. Mata Atlântica são as férias, o cerrado é a vida cotidiana. Também amo o Rio de Janeiro, mas lugar de morar é Brasília. O pensamento da gente também se forma pelo poder do lugar.

           Lugar de aprender, pensavam meus pais, é a escola. Aos 3 anos fui matriculado no Reino Encantado. Não me lembro de muita coisa, naturalmente. Mas não é por isso que alguém poderá dizer que eu aprendi nada ali. Muitos aprendizados não ficam na consciência das memórias, mas nos formam para uma vida inteira. Lembro apenas que gostava muito de correr e brincava com tatu-bolinha (oniscidea) na palma da mão; que a minha melhor amiga era a Érika, que ela me mordia muito porque gostava de mim e que era mais forte que eu. Também me recordo da festa de aniversário do Jaspion que meus pais fizeram pra mim na escola. Lembro-me do gosto da borracha da cabeça do boneco do Jaspion e da Érika ter derramado guaraná nas minhas calças. As competências que desejavam que eu desenvolvesse naquele jardim de infância ficaram registradas em boletins que, por meio dos códigos de semáforo, indicavam se eu havia apresentado um bom desempenho na atividade, se precisava melhorar determinado aspecto ou se não conseguia ou queria realizar certa tarefa. Meus boletins vinham muito verdes, com algumas bolinhas amarelas e quase nenhuma vermelha. Parece que eu tive dificuldades com o fonema 'v', precisava ser menos introvertidotomar mais iniciativa nas atividades, e respeitava o direito dos outros, era cooperativo, atendia ordens. Desde muito cedo me identificaram como bom aluno, pois conseguia me adaptar e tentava corresponder às exigências que me faziam. Essa maneira de ser reconhecido pela minha família me acompanhou a vida toda. Parece-me que ser um bom menino foi também condição para que eu me sentisse aceito e amado.

                 Cresci em um ambiente bastante espiritualizado e Deus sempre foi uma noção muito intuitiva e uma presença profundamente natural pra mim. Meus pais praticavam o Yoga e tinham como referência a espiritualidade de raiz védica trazida da Índia ao ocidente por Paramahansa Yogananda. O mestre iogue chegou aos Estados Unidos em 1920, mas foram as buscas espirituais dos meus pais, ainda nos anos 70, por vias diferentes daquele cristianismo moralista e vazio no qual haviam sido educados, que os levaram a se encontrarem na Self-Realization Fellowship. O Yoga começou a ser difundido no Brasil em pleno regime militar, quando ganhou adeptos tanto entre membros da contracultura quanto nas próprias fileiras militares. Meus pais não eram militares, nem tinham afinidade com movimentos hippies ou esotéricos, eram bastante austeros em suas práticas espirituais e se conformavam bem, sem grandes resistências, aos padrões sociais da época. Meus primeiros anos de vida foram numa família dentro dos padrões, mas com uma experiência religiosa diferente. Isso certamente me marcou.

             Quando eu tinha cinco anos muita coisa mudou. Fenômeno que se tornava mais comum na época: meus pais se divorciaram. Eu e minhas duas irmãs, a mais velha e a mais nova, ficamos com a minha mãe, que era a solução natural daquele tempo. Desde então, cresci em ambiente feminino. Vieram as mudanças de casas, de escolas, de amigos e até de religião. Minha mãe se converteu ao cristianismo, através da Igreja Católica, e iniciou um caminho mais maduro com a antiga e nova fé. Logo fomos sendo educados dentro da doutrina católica e minha experiência com Deus foi encontrando formas e conteúdos cristãos. Meu pai continuou em sua espiritualidade iogue e a vive até hoje. Também mora no mesmo apartamento para onde se mudou quando aconteceu a separação. Com a minha mãe, a gente se mudou para Taguatinga, Guará e mais de vinte endereços diferentes de uma ponta à outra do Plano Piloto ao longo do tempo em que moramos juntos. Assim, virei especialista em mudanças, profundo conhecedor das quadras de Brasília e cristão praticante, mas com duas referências religiosas distintas e muito vivas.

              Aprendizagem fundamental

             A diversidade da vida foi se apresentando para mim, sempre e mais. Após concluir a pré-escola em instituições privadas, por razões financeiras, cursei o ensino fundamental inteiro em escolas públicas. Eram escolas situadas no Plano Piloto, tinham particularidades que me proporcionaram uma experiência marcante com a diversidade. Lembro-me que convivia com colegas que vinham com tênis novos toda semana, tinham estojo de marca cheio de lápis de cor e ainda traziam lancheira, enquanto outros não tinham apontador e seus sapatos eram os mesmos de um ano para o outro. Identificava também diferenças culturais: quem já nascia sabendo inglês e quem ainda teria que encontrar a oportunidade para um dia aprender. Criei gosto por ver lanche de lancheira sendo dividido com todo mundo e ninguém deixando de comer a mesma merenda da escola, naqueles mesmos pratos, colheres e canecas azuis de plástico, todos iguais sendo gente que tem fome, come e fica satisfeita. Apesar de reconhecer que as fomes não eram as mesmas.

         Incomodou-me, muitas vezes, perceber meus privilégios de classe. Em outras tantas, tirei vantagem. Identificavam-me com os mais abastados, apesar de meu pensamento naquela idade fixar que rico era quem tinha tudo o que queria e nunca passava por apertos financeiros, como em alguns momentos passamos lá em casa. Eu me dizia classe média, afinal, tinha gente bem mais rica e mais pobre do que eu. Lembro, contudo, que poucos eram ricos, um bocado maior eram pobres, mas a maioria da turma costumava ser composta por gente de condições materiais intermediárias. Aprendemos logo a distinguir também esses: classe média média, alta e baixa. Dormir na casa de amigos para brincar e fazer trabalhos da escola me deu acesso tanto a apartamento chique com videogame, quarto planejado e televisão gigante, quanto à casa em rua de terra, noite em colchonete e água no copo de alumínio. A escola pública me exigia maior senso de realidade. Recebia das mães dos meninos, carinho e atenção iguais. As pessoas sempre foram gente da mesma gente e, ainda assim, demasiado desiguais.    

               Minha própria família tinha as suas diferenças, havia a realidade da parte da minha mãe e a realidade da parte do meu pai. Quando eu ia passar as férias no Rio, para ver os avós, os tios, os primos, as montanhas e o mar, as diferenças ficavam evidentes. Ninguém era muito pobre, nem muito rico, mas vinham de realidades claramente distintas. Metade das férias eu passava com a família da minha mãe, na zona norte, e outra metade com a do meu pai, na zona sul. Tijuca e Leblon. Numa casa eu andava sem camisa, dormia na sala, escutava tiroteios à noite, via enchentes, falava com as pessoas de modo mais despachado e informal, comia a comida maravilhosa da vovó, que atravessava a cidade de ônibus (nº 110) para me levar à praia. Na outra casa eu usava as minhas melhores roupas, tinha um quarto, aprendia a falar polida e pausadamente, comia a comida feita pela empregada, ganhava sorvetes da vovó, e brincava com os porta-talheres de prata no tapete da sala, estando a alguns metros da praia. Tinha que aprender a me adaptar aos contextos diferentes. As férias sempre ensinavam muito.

             Quando voltava à Brasília era para iniciar um novo ano letivo. Já havia feito a pré-escola em instituições particulares: o Reino Encantado, que tinha a minha amiga Érika; o Inei, onde fiz colares indígenas de macarrão colorido (?); o São Carlos, onde comi muitos biscoitos feitos pelas irmãs religiosas (!); e o Dom Bosco, que tinha aquele desafiante jogo chamado espirobol. No Ensino Fundamental, a minha primeira instituição de ensino pública foi a Escola Normal de Brasília. Minha mãe comemorou quando conseguiu a vaga pra mim, dizia que lá o ensino era muito bom. Era mesmo. Ainda que tivesse a tia Cecília, que me ensinou a ler e escrever, dizendo muito amorosamente que pregaria na parede pela orelha quem fizesse bagunça. Bagunceiro era o Hudson, que me batia. Como eu torcia pra tia Cecília pregar ele pela orelha. Até hoje, o 'H' que aprendi naquela época me lembra o Hudson. A palavra bullying, que décadas depois surgiria nas escolas, me faz pensar em Hudson. Mas é verdade que a vontade de castigar o menino arrefeceu no dia que eu conheci o pai dele, um homem bruto que só falava brigando. O Hudson até mudava de cor e de voz na presença daquele. Castigo que nem ele merecia era ter o pai que tinha. Meu pai não me acompanhava muito de perto, mas era um homem bom, de quem eu podia me orgulhar. Eu ainda iria encontrar outros valentões ao longo da minha vida. Aprendi cedo que eram tão perigosos quanto frágeis. 

            Ainda na Escola Normal, mas agora na segunda série, estava a tia Maria de Jesus, que me ensinou a palavra Solidariedade, com uma música que até hoje tenho na memória. Lembro que tia Maria de Jesus sofria muito quando chovia, porque entrava muita água na nossa sala e aquele era um problema que ela tinha que resolver sozinha. Não sei se invento, mas tenho a impressão de que ela nos pedia desculpas por aquilo acontecer. Saí da Escola Normal e fui pra Escola Classe 108 Sul, em 1996, quando o teto do pátio começou a cair.

               Cursei a terceira e a quarta séries na linda escolinha da 108 Sul. Tirava boas notas. Tímido e comportado, era o bom aluno que prestava muita atenção e procurava não recebê-la em demasia. Mas não passava despercebido quando se cobrava o dever de casa, eu detestava fazer dever de casa e acabava levando bilhetes para a minha mãe por não fazê-los. A reação dela era tirar de mim o que eu mais gostava: brincar na rua. Lembro que nessa época eu tinha muitos amigos na quadra. Chegava da escola, almoçava correndo e descia pra brincar até o sol começar a ir embora. Tenho mais recordações das experiências que vivi na rua do que na escola durante esse período. Só a Escola Parque da 308/307 Sul rompia com a monotonia escolar da semana. A sexta-feira, dia de Escola Parque, era ansiosamente esperada por todo mundo. Ali aprendi a me colocar pra valer nas atividades e desenvolvi sensibilidades. Lembro de cada modalidade artística e esportiva que desenvolvi naquela escola. E não havia deveres de casa.

              Depois da 108 Sul, automaticamente, segui para o Centro de Ensino Fundamental nº 02, na quadra vizinha, a 107 sul. Descobri mais o mundo. No cenário havia meninas, gangues, estudos, videogame, skate e drogas. Ser o bom menino, fez-me passar ileso pelo contexto das gangues e das drogas. A timidez me atrapalhou com as meninas. Fui bem nos estudos e aproveitei muito o videogame e o skate. Naquela fase também descobri que recebia tratamento diferente, da parte de moradores e lojistas da quadra, se estava com o uniforme da escola ou vestido como um morador local. Não era bom ficar muito tempo embaixo de um bloco ou frequentar a banquinha se estivesse de uniforme escolar. Não esqueço a expressão do síndico do bloco vizinho à escola, que havia furiosamente nos expulsado do pilotis na sexta-feira, ao me ver brincando com seus filhos e a turma da quadra, a mesma brincadeira, no mesmo lugar, no final de semana. Ficou constrangido. Alguém teria que ser muito cínico para afirmar que o problema tinha sido o dia da semana. O tal síndico parou de prestar queixas a nosso respeito para a direção da escola e passou a mandar o zelador pedir para fazermos menos barulho.

                

              O que você quer ser ?

               As histórias que me contavam sobre as escolas públicas de Ensino Médio para onde eu seria automaticamente encaminhado não eram as melhores. Na verdade, eram assustadoras. Violência, desordem e ensino ruim. Diziam que eram escolas em decadência, que já haviam sido boas, mas que estavam chegando ao seu fim. Vi meus amigos, que tinham melhores condições financeiras, indo para escolas particulares para poderem "ser alguém na vida". Vi meus amigos, que não tinham como pagar uma escola, desacreditarem a vida. Acreditei nessa história e pedi para minha mãe me colocar em uma escola particular. Queria escapar da condenação. Minha mãe também teve fé nessa história e fez malabarismos financeiros, buscou bolsas, auxílios, e conseguiu me matricular no Colégio La Salle, da Asa Sul.

               Desde muito pequeno eu dizia que queria ser arquiteto. Meu pai era arquiteto, meu avô havia sido arquiteto, meu bisavô havia sido engenheiro e a minha admiração por eles era imensa. Eu gostava muito de brincar de construir e desenhar. Era observador e detalhista. No fluxo dessa corrente, entrei no novo Colégio repetindo o que sempre respondi para todo mundo sobre o curso que eu queria fazer quando entrasse na universidade: Arquitetura. Foi naquela época que descobri que minha mãe, formada em Letras pela Universidade Federal Fluminense (UFF), também era técnica em Edificações, tendo feito o equivalente ao Ensino Médio no campus Maracanã do Centro Federal de Educação Tecnológica (CEFET/RJ). A descoberta aconteceu porque ela decidiu comprar um terreno na região do Jardim Botânico (DF) e construir uma casa. Vi a minha mãe, que era servidora pública de gabinete do judiciário, planejando uma casa inteira, percebi o quanto ela entendia sobre o processo construtivo e ela me explicou o motivo. Eu só podia ser arquiteto.

               Comecei o Ensino Médio no La Salle, naquele ano de 2002, tempos em que o Brasil ganhava Copas do Mundo e sabia escolher presidente. Foram bem marcantes aquelas primeiras impressões da escola, contraste vivo com a minha experiência nas instituições públicas. Consigo descrever essas impressões sob dois aspectos: o material e o espiritual. Materialmente, a escola era muito organizada, de estruturas bem conservadas e todos os equipamentos pareciam novos e limpos. Espiritualmente, a escola tinha uma homogeneidade impressionante. Com isso, quero dizer que as pessoas eram extremamente parecidas entre si em suas formas de perceber e julgar o mundo. Tinham o mesmo jeito de falar, os mesmos lugares pra viajar, moravam em lugares parecidos, frequentavam lugares parecidos, tinham histórias bastante parecidas, organizavam seus dias de forma parecida, tinham materiais escolares parecidos. Aquela diversidade toda, com a qual havia vivenciado o meu ensino fundamental, tinha desaparecido completamente. E era engraçado ver as pessoas, dentro daquela realidade, tentando se diferenciar umas das outras por suas tribos ou grupos de interesse. Quanto mais parecido é o ser humano, mais necessita se diferenciar. Com o tempo fui me habituando àquele novo universo e perdendo a sensação de parecença entre as pessoas da escola, fui me tornando cada vez menos capaz de enxergar as similitudes e, consequentemente, tornando-me mais parecido com todo mundo.

              Tive algumas dificuldades com a matemática no começo do ano. Faltavam pré-requisitos na minha formação para dar conta da matéria e hábito de estudo para acompanhar o ritmo da turma. Mas me dedicava a entender os conteúdos em sala e a descobrir onde estavam as lacunas da minha formação. Tive que aprender a fazer exercícios em casa e a tirar dúvidas com o professor. Praticamente, só fazia deveres de casa de matemática. Minha agenda, com certa frequência, voltava pra casa com carimbos dos demais professores reclamando a falta de um dever de casa. Tirava boas notas nas provas e nas avaliações maiores, abria mão das pequenas notas dos deveres de casa. Minha mãe reclamava do constrangimento de assinar tanto a minha agenda, mas eu mostrava minhas notas no final do bimestre e ela cedia. Eram muitas matérias e muitos deveres de casa. Pra mim, lugar e tempo de estudar eram os da escola, o outro turno era meu, para viver coisas que eu julgasse mais interessantes. Fazia os deveres quando era inescapável. No mais, só despendia meu tempo fora da escola com os trabalhos escolares de notas relevantes. Esses eu buscava fazer bem. Anos mais tarde me arrependeria de não ter desenvolvido maior disciplina, de não ter aprendido mais na escola e de ter me importado restritamente com tirar notas para passar de ano.

               Meus interesses fora da escola estavam concentrados principalmente na espiritualidade cristã. Aquela presença natural de Deus, aquela noção intuitiva sobre Ele que me acompanhava desde criança, exigia maior aprofundamento naquela idade, reclamava racionalização. Eu queria conhecer Deus, pelo menos um pouco. O catolicismo me deu a forma concreta e compatível com aquela minha intuição mais profunda de Deus: Jesus. Gostava muito de meditar, estar em oração. Lia muitos livros sobre a vida dos santos, livros escritos por santos, pelos padres do deserto, pela igreja oriental, pelos místicos cristãos, estudava a doutrina da igreja católica e claro, a Bíblia, principalmente o Novo Testamento. Os adolescentes conseguem se entregar radicalmente a uma experiência se entendem que ela é justa e bela. Também me aventurava a conhecer algo do hinduísmo, do budismo, do islamismo. Marcaram-me as leituras do Bhagavad Gita e dos poemas de Rumi. Mas era católico, profundamente católico. Frequentava a igreja assiduamente, participava de grupo de jovens, organizava retiros e momentos de oração. Não gostava muito da minha escola nesse sentido, pois se dizia católica e apresentava um cristianismo superficial, formal e nada reflexivo. As aulas de história e filosofia, que eram bastante críticas às práticas e aos posicionamentos da igreja, eram mais interessantes que o catolicismo do colégio por serem muito mais verdadeiras. Percebo que as escolas pelas quais passei durante todo o meu Ensino Básico, estavam comprometidas intrinsecamente com o humanismo, ajudaram-me a desenvolver minhas potencialidades, minha noção de compromisso social, meu respeito aos direitos humanos. 

             O grupo de jovens do qual participava na paróquia era plural em diversos aspectos: idade, espiritualidade, orientação sexual, classe social. Além do grupo me oferecer uma comunidade afetiva, uma rede segura de amizades e uma experiência religiosa essencial, ajudava-me a aprofundar o caminho reflexivo, crítico e questionador sobre a minha própria fé. Deus, para mim, celebrava as minhas dúvidas, pois elas me davam mais chances de aprofundar meu conhecimento sobre Ele. A igreja também me fazia sair da fantasia confortável do Plano Piloto, ir às periferias do Distrito Federal e do seu Entorno. Não apenas para promover certo tipo de assistencialismo, mas, muito naturalmente, porque eu acabava conhecendo pessoas de realidades sociais bem diferentes da minha naqueles ambientes religiosos e, consequentemente, nos colocávamos a viver juntos a vida, estreitávamos relacionamentos. Fui formado por esses relacionamentos. 

                Ao final do Ensino Médio eu havia aprendido a ler e escrever melhor, decorar fórmulas antes das provas, jogar vôlei de uma forma aceitável, copiar dever de casa, compreender mais o mundo em que eu vivia, pensar as relações sociais, ler partitura musical, perder a timidez e tanto mais. Algumas dessas coisas, não exclusivamente aprendi na escola. Mas aquele colégio me marcou positivamente. Ali encontrei professores que admiro imensamente e tenho como referência na minha profissão. Gostava muito da minha turma do 3º ano. Lá conheci pessoas que chamo de amigas e até hoje saio para ir ao encontro. Não foi por acaso que o futuro profissional que eu predizia, tão certo e genético, mudou. As minhas experiências ao longo do Ensino Médio, dentro e fora da escola, transformaram-me.

               Recordo o último semestre de 2004, quando eu tinha que fazer a minha opção de curso para me inscrever na última etapa do Programa de Avaliação Seriada da Universidade de Brasília (PAS/UnB) e não queria cursar arquitetura. Gostava de desenhar, era bom em matemática e fascinado por construções, mas tinha entendido que o mais instigante e atraente das edificações era justamente a história humana que se fazia no interior delas. Não dava importância cega e absoluta ao vestibular, pois sabia que a vida era mais que passar num processo seletivo. Desconhecia as minhas notas nas duas primeiras etapas e não tinha vontade de fazer a terceira. Minha mãe me obrigou a fazê-la, não importava o curso que eu escolhesse. Para a arquitetura eu teria que fazer, além da prova comum a todos, uma avaliação de habilidades específicas. Eu não queria fazer uma prova, quanto mais duas. A nota de corte do curso também era alta e eu nem sabia as minhas chances. Pensava em ser religioso, filósofo, psicólogo ou historiador. Na verdade, não sabia o que queria e me irritava muito ter que fazer aquela escolha de qualquer maneira.

            Lembro que, na última hora para inscrição no PAS/UnB, entrei correndo no computador da casa de um amigo para me inscrever e marcar como opção filosofia, psicologia ou história. Comecei a ler as descrições dos cursos na página do candidato, para ver se ganhava ajuda, e encontrei a descrição do curso de Ciências Sociais. Fiquei interessado. Principalmente porque percebi que havia a possibilidade de escolher posteriormente entre dois cursos: Antropologia e Sociologia. Faria uma prova e entraria em dois cursos, muito mais vantajoso. Era provável que eu gostasse de algum. Tinha visto algo chamado Sociologia naquele ano do Ensino Médio e achava o assunto instigante. Fiz a inscrição, a prova e, no início do ano seguinte, de férias na casa da vovó, fiquei sabendo que havia entrado na Universidade. Minhas notas no programa, fiquei sabendo depois: eram muito boas. Podia ter escolhido outros cursos, inclusive a arquitetura. Mas seria um cientista social, nunca havia imaginado aquilo. Não sabia muito o que significavam as Ciências Sociais, nem se gostaria de concluir o curso. Minha mãe havia comemorado, mas depois ficou preocupada, pois tinha medo que eu virasse comunista. Apesar do desconhecimento, eu estava animado para viver o curso, a famosa universidade, iniciar a minha formação.

                

              Graduação

               

         A Universidade tinha os mesmos traços da sua cidade. Fui recebido à pé por amplos gramados, árvores dispersas, prédios rasteiros de muito concreto e milhares de jovens estudantes. Alguns mais agitados e perdidos que outros: os calouros. Eu era um deles e rapidamente nos associamos. Era fácil identificar quem era calouro e veterano na Universidade, bastava ver quem caminhava pelos espaços em bando, bobamente sorrindo, admirando cartazes, e quem andava objetivamente, sozinho, com feições determinadas. Eu e minha turma fomos introduzidos de diversas formas no mundo acadêmico: Introdução à Sociologia, Introdução à Antropologia, Introdução à Economia, Introdução à Ciência Política e História Social e Política Geral. Apaixonei-me pela Antropologia. O conceito de alteridade, a diversidade humana, o ser humano enquanto ser social, o método etnográfico, o relativismo cultural. A imagem da minha cabeça se expandindo, meus horizontes sobre a vida e o mundo se ampliando consideravelmente me marcaram. Acho que desde que havia aprendido a ler não experimentava algo parecido. Estava aprendendo a ler o mundo. Também gostava de Sociologia e das outras matérias, eram todas complementares àquele momento de descobertas, mas a Antropologia era especial. Achei que seria antropólogo.

                O primeiro semestre me ensinou que eu deveria aprender a estudar em casa. Não dava mais para apenas prestar atenção e compreender os assuntos em sala de aula. A leitura prévia de textos e minha reflexão sobre eles era basilar. Também não dava pro meu compromisso estar em apenas passar na matéria, precisava realmente aprender, dominar conteúdos, pois a minha futura profissão teria sua base naquela formação. Tinha pilhas de livros inteiros para ler e não eram religiosos. A dificuldade com a forma textual de alguns me marcou. Ler e não entender, pesquisar, reler até entender, era o processo. Foi muito difícil aprender a estudar e algumas vezes não fui bem. Nesses momentos, os colegas que assumiam ter alguma dificuldade eram solidários e incentivavam o caminho.

               Entrei na Universidade de Brasília em tempos de muitas mudanças. Algumas delas presenciei ao longo do curso, outras só fui ver resultados concretos anos depois do meu egresso. No semestre anterior à minha entrada na UnB, cerca de 400 estudantes eram os primeiros a ingressar naquele ambiente acadêmico por um sistema de cotas raciais. Entrei em uma instituição quase exclusivamente branca e saí da mesma instituição quando ela evidenciava certa diversidade. Presenciar esse processo foi muito significativo pra mim. Levou-me a cursar uma disciplina de módulo livre chamada Cultura, Poder e Relações Raciais, que desvelou inequivocamente as relações de poder e as estratégias de dominação raciais.

             Não era apenas a UnB que sofria mudanças, outras disciplinas também contribuíam para a minha trans-formação e marcavam notadamente o meu percurso acadêmico. A minha primeira experiência com uma pesquisa sociológica, por exemplo, foi na disciplina Sociologia da Violência e da Conflitualidade, onde participei de um censo internacional sobre delegacias. Visitávamos as delegacias. Aprendi a seguir as perguntas de roteiro, mas estar atento aos detalhes à minha volta. Minha primeira experiência em dar aulas foi numa escola pública de Planaltina, pela disciplina Práticas de Ensino em Ciências Sociais. Foram três meses, indo uma vez por semana, de carona com meu amigo professor de filosofia, que me havia cedido o espaço. Fiquei impressionado com a energia e a agitação dos alunos, tinha que responder com desenvoltura e dinâmicas à altura para tornar aqueles encontros interessantes. Também tinha que ser disciplinador nos momentos em que tudo desandava. Lembro que eram várias turmas, uma seguida da outra, e cada uma com sua própria personalidade. O que havia funcionado perfeitamente com uma turma, às vezes era ignorado por outra. Aprendi que, antes de dar aulas, se o desejo do professor é despertar interesse pelo conhecimento, é importante conhecer as pessoas.

        A disciplina Teorias Antropológicas 1 me fez ficar mais distante e desencantado com a antropologia e Teorias Sociológicas Clássicas iniciou a minha aproximação da sociologia. Paixões acabam e antigos relacionamentos ganham novas proporções: foi algo que também aprendi com a disciplina Psicologia Social. Essa disciplina me fez também entender algumas dinâmicas presentes na academia, quando me colocou obrigatoriamente na pesquisa de uma doutoranda que pretendia compreender como as pessoas escolhiam seus cursos superiores, claramente intencionada a vender esse conhecimento para o mercado. Trabalhei bastante, ganhei nota e algum aprendizado sobre a atividade de pesquisa, pelo menos. Em Teorias Sociológicas Contemporâneas encontrei um verdadeiro mestre, alguém que se importava genuinamente com a minha aprendizagem, o professor Edson Farias, que seria meu orientador em Práticas de Pesquisa 1 e 2, para a produção da minha monografia. Sociologia da Religião, sem decepcionar, apresentou-me perspectivas novas sobre a experiência humana com o sagrado e os fenômenos religiosos. Estrutura de Classes e Estratificação Social aprofundou minha capacidade analítica acerca da trama das desigualdades sociais, tema caro pra mim. E foi Teorias da Socialização que me proporcionou uma das experiências em sala de aula, como aluno, mais interessantes que vivi, quando, por meio do teatro, deu-me acesso a um entendimento experiencial sobre o ser humano. Todas as outras disciplinas deixaram também marcas em mim, assim como o ambiente fora das disciplinas, mas essas são as mais presentes hoje na memória. 

           Eu aprendia, conhecia e mudava. Minha relação com as pessoas e com Deus também se transformava. Não há como passar incólume por um processo de formação dessa natureza. Um exemplo simples: eu sempre queria falar com as pessoas sobre o que estava aprendendo com a Sociologia, para que elas aprendessem também, e não resistia a analisar os assuntos sob a minha nova perspectiva, mas não era incomum ocorrer o efeito gangorra: eu me sentava na roda de conversa e todo mundo se levantava. Aprendi logo a conversar os assuntos apropriados com as pessoas interessadas e a criar estratégias para cativar pessoas que possivelmente se interessariam pela discussão sociológica.

                Minha mãe também resolveu viver mudança, dessa vez, para o Rio de Janeiro. Ela foi com minha irmã mais nova, eu fiquei com minha irmã mais velha. Comecei a morar praticamente sozinho, pois minha irmã já estava noiva. Tempos de amadurecimento. Minha segunda mãe, ex-esposa do meu pai, aproximou-se para cuidar de mim. Ela era psicóloga e estava cursando o mestrado em Ciências Políticas, então me chamou para ajudá-la em sua pesquisa sobre os impactos da anomia na polícia militar do Distrito Federal. Contratou-me através de sua clínica de psicologia como estagiário, ali realizei a minha primeira experiência profissional. Fazia o secretário do consultório, organizava os dados coletados na pesquisa e contribuía com discussões metodológicas e sociológicas.

             Mas a mudança da minha relação com Deus era mais difícil de contornar. Lembro que Deus, aquela presença natural, começou a ser pra mim uma ideia artificial, algo que o ser humano cria para lidar com os dramas da vida e com a questão da morte. A igreja tornou-se mera instituição política, com toda a sua dinâmica interna de interesses comezinhos, rituais teatralizados e de disputa discursiva sobre o mundo e a vida. Os cristãos eram gente sem novidade nenhuma, que falava muito sobre o amor, mas se importava com outras coisas na prática, principalmente com ser mais que os outros. Também me via assim. Mas havia algo em mim que resistia, não dava conta de desacreditar naquilo que já havia experimentado: Deus, a compaixão, o amor. Havia conhecido o cristianismo desde a sua vertente mais revolucionária à mais conservadora, e tinha aprendido coisas valiosas com ambas, mas não me encontrava mais em lugar algum daquela igreja. Foi no meio da graduação que conheci um movimento da Igreja Católica que me deu respostas expressivas para as questões que eu vivia, através de experiências pessoais muito simples e práticas. Era o Movimento dos Focolares, nascido na Itália, fundado por Chiara Lubich, em plena Segunda Guerra Mundial, quando atrocidades eram cometidas contra a humanidade por gente que conhecia e pregava o cristianismo. Esse movimento tem como meta a realização da humanidade como uma única família, em todas as suas matizes de diversidade e, para isso, propõe uma espiritualidade prática, na qual a relação com outro é lugar privilegiado para o encontro com Deus, que é Amor. É um movimento mundial que promove o ecumenismo, o diálogo inter-religioso e a fraternidade como categoria política para a superação de problemas. Tal movimento me ofereceu mais que uma perspectiva teórica bonita e que fazia sentido, mas uma experiência de realização humana concreta e profunda, um reencontro com aquela presença divina muito natural e, desde então, mais real e significativa.

        Em 2009, pouco antes de concluir a graduação, solicitei o trancamento do curso por um semestre e fui a Loppiano, na Itália, para fazer a experiência que se tornaria a mais marcante da minha vida. Era uma cidadezinha no ambiente rural da Toscana, próxima à Florença, que recebia pessoas de diferentes religiões, culturas e nacionalidades para escolas de vivência e aprofundamento da espiritualidade do Movimento dos Focolares. Morei com jovens de vinte e cinco países, dos cinco continentes. Éramos cristãos, muçulmanos, hinduístas, budistas, agnósticos e ateus dedicando esforços para realizar uma vida de construção do bem comum. Lá trabalhei os seis meses da escola como auxiliar de cozinha, no restaurante da cidadela. Aprendi a cozinhar alguma coisa depois de alguns desastres. Foi uma experiência importante enquanto trabalhador, vendo o fruto concreto dos meus esforços alimentando as pessoas. Ao final do mês, colocávamos todos os nossos salários em comum e decidíamos juntos como gastá-los, de acordo com as necessidades que se apresentavam. Nem tudo era constante paraíso, mas ali experimentei que era factível um mundo de relações diferentes, provei um oásis.

               Terminados os seis meses, voltei pra UnB. Minha forma de viver e perceber a vida e o mundo impactava meus temas de interesse acadêmico como, evidentemente, ocorre com qualquer pessoa. Aprendi a ter isso diante de mim e me acostumei a estar cercado por algumas pessoas de perspectivas diferentes da minha, capazes de contrapor ideias, dialogar, debater, contribuir. Um dos temas que me instigavam na graduação era o fenômeno da reificação do ser humano nas relações sociais. Em síntese, é o processo pelo qual as pessoas deixam de se relacionar umas com as outras enquanto seres humanos e essa relação assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Também era sensível às questões que envolviam a temática do reconhecimento. Afinal, somos seres construídos por relacionamentos e, nas dinâmicas sociais, ganhar existência ou perdê-la diante dos outros, não é uma banalidade. 

             Não à toa, meu primeiro trabalho acadêmico de maior complexidade, a minha monografia, analisou os sentidos e representações basilares do noticiário policial Na Polícia e Nas Ruas, que semanalmente era distribuído na rodoviária da capital, estampando corpo e sangue de gente morta. O processo de pesquisa e redação dessa monografia foi substancialmente exaustivo e penoso. Além de colher, analisar e conviver com corpos dilacerados por um ano, eu tive que desenvolver a prática e a disciplina da constante produção escrita. Durante o curso, tinha aprendido a me sentar pra ler e estudar, mas não para escrever daquela forma. Era frustrante passar o dia escrevendo e reescrevendo um único parágrafo. Era ruim ter pesadelos com os policiais e os mortos do jornal. Mas houve, por outro lado, inegáveis pontos positivos nessa experiência. As idas à campo, as visitas à redação do jornal, as entrevistas feitas com os seus autores, as descobertas, os lampejos de ideias, as conexões originais, os aprendizados. Era muito bom também poder contar com o orientador que tive. Além de um intelectual versado e sábio, era um orientador bastante comprometido com qualquer um de seus alunos, tinha generosidade para ensinar, abertura para dialogar, aprender, além de ser sincero em suas colocações. Em 2010, concluí contente a minha graduação em sociologia, mas desgastado com o mundo acadêmico.

                

 

                Hora de trabalhar

             O professor que me orientou na monografia queria que eu desse continuidade às pesquisas, ingressando no mestrado. Mas, além de estar cansado daquele ambiente, eu precisava arrumar emprego, garantir o lado prático da vida. Morava sozinho e já não queria contar com a ajuda do meu pai para pagar as minhas contas. Também não queria ingressar no mercado de trabalho em um emprego que não me desse condições de crescer e estudar. Fui para os concursos públicos, à procura de estabilidade e salário, como bom filho da cidade. Tive a vantagem de ter o apoio financeiro do meu pai nesse período através da pensão alimentícia. Privilégio.

               Enquanto estudava para uma boa vaga qualquer no funcionalismo público, distribuía os meus currículos pela cidade. Consegui um bico de professor de italiano para uma empresa de turismo, através de uma escola de idiomas. Dava muito trabalho para o pouco que ganhava, mas já era alguma coisa. Fiquei amigo do pessoal da empresa de turismo que, mesmo não tendo aprendido tanta coisa de italiano comigo, cismava em querer me recontratar. Certa vez, acabaram falando o valor que pagavam para a escola de idiomas para terem as minhas aulas, era melhor se nunca tivéssemos ficado tão amigos. Eles não sabiam, mas estávamos todos sendo explorados pela escola. A verdade é que eu estava gostando muito de ser professor daquele pessoal e fiz mais um semestre. As aulas do estágio na escola pública de Planaltina não tinham criado um vínculo daquela forma com nenhuma turma.

             No meio do último semestre que dei as aulas de italiano, convidaram-me para dar aulas de política, cidadania e fraternidade para jovens de Águas Lindas, Corumbá e Cocalzinho, como professor voluntário. A experiência foi marcante. Perceber que eu tinha algo significativo para dar, que as pessoas ficavam contentes com o que acabavam de aprender, deixava-me, de alguma forma, realizado. Parei de prestar os concursos quaisquer e esperei surgir a oportunidade para me candidatar a professor.

              Surgiram os concursos para professor de sociologia do Instituto Federal de Brasília (IFB) e da Secretaria de Educação (SEEDF). Estudei e passei nos dois. No concurso da Secretaria de Educação, tinha chances de ser chamado em um ano. No concurso do IFB, havia ficado em terceiro e apenas duas vagas eram para preenchimento imediato. Esperei dois anos para ser chamado nos dois processos seletivos. Nesse tempo de espera, vivenciei outra marcante experiência profissional. Fui convidado a ser assessor de políticas do livro e da leitura do Distrito Federal, na Secretaria de Cultura do GDF (SECULT). 

             Primeiro emprego no governo, primeira vez que era trabalhador cadastrado em um sistema, primeira vez que ganhava salário automaticamente na conta do banco. Mas não era concursado, havia sido convidado para realizar um projeto político no qual acreditava, e isso gerava conflitos com quem era servidor passado em concurso, que não acreditava naquele projeto ou, na maioria dos casos, que nem queria acreditar. Minha forma de estar no mundo, aos poucos, abriu a possibilidade de estreitar relacionamentos e ganhar confiança de quem fazia oposição. Eu aprendi a transitar entre todos e convidar, quando possível, para o trabalho que gostaríamos que fosse feito. Causou-me forte impressão aquele hábito de reclamar do governo sem perceber que alguns resultados eram frutos do próprio trabalho ou da falta dele. Também ficava impressionado com a mentalidade, não declarada, mas em tudo evidente, que fazer o mínimo no trabalho era um direito meritocraticamente adquirido por quem passa em concurso. Há uma cultura de se entrar no serviço público para ser, meritocraticamente, servido pelo povo. Gente que pensava assim era quem mais reclamava de corrupção.

               Aprendi muito com os vários outros colegas que pensavam e agiam diferente. Servidores que, concursados ou não, empenhavam-se efetivamente em fazer um bom trabalho. Graças ao empenho desses, conseguimos estruturar e abrir o acervo da Biblioteca Nacional de Brasília para o público, desenvolver importantes projetos de livro e leitura nas bibliotecas públicas e no sistema prisional do DF, realizar eventos e feiras literárias, estabelecer parcerias e acordos locais e internacionais, dispor uma referência teórico-prática de trabalho com bibliotecas públicas e entregar o Plano do Distrito Federal do Livro e da Leitura para a sociedade. Nesse emprego, descobri a importância dos relacionamentos e da abertura para o diálogo na resolução de dificuldades e desentendimentos. Convivi com pessoas que admiro e deixaram sua marca em mim. Ivanna Sant'anna Torres, minha chefe, era pura dedicação e seriedade sem perder a ternura, tinha orgulho de ser chamada de professora e me inspirava muito. Apaixonei-me por bibliotecas e pela concepção contemporânea que hoje tenho sobre elas. Conheci na prática a dinâmica política da cidade de mais perto. Descobri que não tenho perfil para um cargo político eletivo. Viver na jagunçagem é muito perigoso.

               Por volta de completar dois anos de trabalho como assessor da Subsecretaria de Políticas do Livro e da Leitura, fui promovido a Coordenador do Plano do Distrito Federal do Livro e da Leitura. Apesar de ganhar mais, intensifiquei as orações para ser logo chamado no concurso do IFB. Era ano eleitoral. Estava cansado do ambiente político e das dificuldades vivenciadas ali, principalmente porque se consolidavam diante de mim as coisas que tanto queríamos, mas não conseguiríamos realizar. Fracassos. É sempre desagradável conviver com eles.

               No dia 23 de janeiro de 2014, uma manhã de quinta-feira, como de costume cotidiano, abri o Diário Oficial da União e pesquisei meu nome. Lá estava. Havia sido chamado a ser servidor público, professor do Instituto Federal de Brasília no campus Samambaia. Lugar de cursos de Edificações, Produção Moveleira e Controle Ambiental. Comemorei com o povo da biblioteca. Não esperei esgotar prazo algum, queria iniciar minha história na docência o quanto antes, logo fui visitar o campus, fazer exames e me apresentar para a posse. Entrei muito animado, pronto para contribuir com tudo o que pudesse.

           Meses depois, estava na coordenação do Núcleo de Apoio às Pessoas com Necessidades Específicas (NAPNE). Ali consegui organizar um trabalho de acompanhamento sistemático dos alunos e, com a ajuda de vários colegas, desenvolvemos um programa de atividades diversificadas que trabalhavam a temática do respeito às diferenças e da inclusão chamado Viva a Diversidade. Entrei em diversas comissões e elaborava planos de curso enquanto não havia turmas em que pudesse atuar como professor em sala de aula. Era um pouco sofrida aquela fase de estruturação do campus e, mais espinhosa ainda, a relação entre professores e técnicos. Coordenei a elaboração de um projeto coletivo de campus que foi produto de diálogos entre todos, mas não conseguiu aplacar feridas e divisões. Encontrei gente inspiradora, sensível e competente ali, algumas delas tive a felicidade de me tornar amigo. Queria aprender com aquela turma, ser professor mais parecido com elas. Surpresa minha foi pedirem para eu falar, escrever o primeiro capítulo do livro Integrações: diálogos sobre o Ensino Médio

              Em 2015, ano em que me casei com a Letícia, recebemos na escola a nossa primeira turma de Ensino Médio Integrado. Comecei a minha jornada em salas de aula para ensinar sociologia em cursos técnicos. Essa primeira turma foi experiência trabalhosa e profundamente gratificante. Conhecer os alunos, abrir caminhos para as suas curiosidades, estar disponível para o diálogo. Depois chegou a minha entrada na educação de jovens e adultos com o PROEJA. Comecei perdido diante de gente tão vivida, mas depois encontrei caminho para ampliar nossas leituras de mundo. Desarmar resistências, acolher histórias, valorizar potencialidades. Também atuei como professor de ética em cursos Subsequentes. Provocar a reflexão, instigar a dúvida, chamar às responsabilidades. Foi necessário conhecer um pouco mais sobre as áreas presentes no campus para conseguir ensinar melhor. Nesses poucos anos de atuação docente percebo como a minha forma de atuação já mudou significativamente. No início, busquei a segurança do conteudismo mas, com o tempo, fui aprendendo a integrar contribuições às formações técnicas específicas, a promover um ensino mais significativo, a me concentrar mais nas competências que os alunos realmente precisavam desenvolver.

          Lembrei-me da minha experiência com o teatro em sala de aula, quando era aluno da graduação. Ainda não consigo desenvolver um semestre inteiro ensinando sociologia por meio do teatro, ele tem entrado em momentos pontuais do meu plano de ensino. Tenho priorizado a prática da pesquisa para a compreensão da sociologia com o Ensino Médio Integrado e a produção sociobiográfica dos alunos no PROEJA. Mas iniciei oficinas de leitura dramática como projeto de extensão, utilizando as bases conceituais do Teatro do Oprimido. Em 2016, uma professora amiga me apresentou a obra de João Guimarães Rosa apaixonadamente. Maior presente que tive naquele ano desigual, um golpe de literatura na alma. Deu-me as chaves da leitura de Grande Sertão: Veredas e mergulhei sem respiros. Virou leitura para a vida toda. Virou peça construída, refletida e apresentada pelos alunos do Ensino Médio.

              Fazer o próprio caminho

                 

          Assim que entrei no IFB, sabia que era hora de retomar a minha trajetória de formação acadêmica. O lado prático da vida já estava organizado e eu poderia retornar aos estudos com maior segurança. Conversei com meu antigo orientador, que foi uma das primeiras pessoas que liguei para contar sobre a minha nomeação para ser professor no Instituto Federal. Em 2014, envolvi-me com a realidade da escola e deixei passar a seleção daquele ano para o mestrado em sociologia. Em 2015, os prazos de projetos que eu estava desenvolvendo coincidiram com a data da seleção. Em 2016, inscrevi o meu projeto de pesquisa, que foi aprovado, mas não passei pela prova teórica. Em 2017, certo de que dessa vez ingressaria, confundi as datas para inscrição do projeto e perdi o prazo. Fracassos. Pretendia, como pesquisador, produzir uma sociobiografia de Samambaia, por meio da análise documental da trajetória socio-histórica da cidade e das narrativas biográficas das pessoas que conformaram aquela realidade social. Olhando para esse projeto, percebo que meu interesse em Samambaia vem da minha atuação profissional naquela região. Meu trabalho já me transforma e me faz ter interesses outros diante da vida.

             Quando recebi o e-mail que divulgava o edital e a abertura das inscrições para o processo seletivo do Mestrado Profissional em Educação Profissional (PROFEPT), não hesitei, fui um dos primeiros a fazer a inscrição. Provavelmente, fui também um dos últimos a estudar. Como de costume, rezei. Como nem sempre, fui aprovado. Alegria maior ainda veio depois: saber que seria aluno de gente que sempre quis ser aluno.

               Tenho uma história de formação e de trabalho marcada por alguns sucessos, alguns fracassos e por muita coisa que nem sei (ou quero) classificar. Vida mais comum, de qualquer um. Caminho perene, mas cheio de rupturas e descontinuidades que a narrativa, pretendendo a unidade, ameniza. Vejo esse mestrado como um recomeço, retomada de um tempo vivido em outros ambientes, possibilidade de reconciliação entre escolhas feitas. Acredito que esse mestrado vai me ajudar a compreender como atuar melhor no mundo. Pretendo ampliar meus conhecimentos, aprender sempre e mais, principalmente a ser um professor melhor. Gostaria de desenvolver algum produto educacional que tivesse real impacto social.

           Após conversar com o professor Glauco, meu orientador no mestrado, decidi enfrentar um problema que considero basilar para os Institutos Federais: a prática do ensino na educação profissional descompromissada com a formação de seres humanos críticos, solidários e emancipados. Muito dessa falta de compromisso com determinadas diretrizes e valores afirmados pela própria instituição em seus documentos regimentais e norteadores pode vir do desconhecimento do real significado de determinados termos, conceitos e expressões que, advindos da academia, são ressignificados pelo senso comum dos servidores envolvidos com as práticas de ensino. Para um primeiro ataque ao problema, pretendo reunir os termos mais frequentes naqueles documentos e produzir um glossário. Depois, desejo produzir um aplicativo (ou site) que disponibilize um curso baseado no glossário e que certifique os servidores concluintes de seu real conhecimento acerca dos conceitos e termos relacionados à educação para a cidadania e emancipação do ser humano. Mesmo sabendo que a compreensão de conceitos não transforma necessariamente as práticas e que o descompromisso também é posicionamento político de muitos, acredito que a confusão com termos e conceitos, por sua vez, impossibilita qualquer mudança.

          Por fim, concluo este meu Memorial anunciando que Letícia está grávida e vamos ter um bebê durante esse mestrado. O nome dela é Lia e já a amamos com amor sem fim. Estou muito feliz nesses tempos de gestação e espera. Tenho apenas medo de não corresponder às expectativas que todos nós temos sobre mim. Ser bom pai, bom marido, bom professor, bom aluno. Preocupa-me, hoje, vacilar e não conseguir. Entendendo a minha história você me olha, pensa, repensa e diz, pois alguma coisa entende. Assim é como estou, entre coisas que falei e deixei de falar, por escolha ou esquecimento. O que prometi ofereci: o íntimo e o sagrado. A síntese, você já deve ter percebido: ser humano ajudando outros seres humanos a se realizarem e, na travessia, sendo realizado também.

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