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Trabalho e Dialética

Hegel, Marx e a teoria social do devir


Resenha


RANIERI, Jesus. Trabalho e Dialética: Hegel, Marx e a teoria social do devir. São Paulo: Boitempo, 2011.

André Fernandes Rodrigues Pereira

Mestrando em Educação Profissional (PROFEPT)

Instituto Federal de Brasília


Hegel foi o filósofo mais famoso da Alemanha na primeira metade do século XIX. Marx, posteriormente, veio a estudar o sistema filosófico de Hegel e tornou-se o pensador mais famoso daquele século inteiro. Entre esses dois expoentes do pensamento, encontramos proximidades e distinções. Há quem afirme, de forma simplória, que a diferença entre ambos é marcada e nítida: Hegel idealista e Marx materialista. No entanto, ao observarmos as proposições dos dois filósofos com maior dedicação, o que fica claro não são adesões inequívocas a partidos de pensamento opostos e excludentes, mas a intrínseca complementaridade e influência de um sistema filosófico em relação ao seu posterior.


O conteúdo das contribuições de Hegel é profundamente basilar às concepções de Marx e não é possível compreender razoavelmente Marx expurgando Hegel de seu pensamento. Isto é o que evidencia o livro de Jesus Ranieri, Trabalho e Dialética: Hegel, Marx e a teoria social do devir, no qual o autor destaca o quanto Hegel possibilitou o materialismo marxiano e, de certa maneira, como Marx absorveu criticamente elementos advindos do idealismo hegeliano. Na verdade, quanto às contradições de um filósofo em relação ao outro, nada se funda naquele ingênuo rompimento absoluto entre completos opostos, mas tudo finda naquele movimento necessário e lógico de superação e síntese, que, segundo ambos, move a própria história humana. Assim, como tarefa essencial, o livro expõe aspectos do sistema teórico de Hegel e revela a herança desse sistema para a teoria de Marx.


Apoiado nas contribuições de György Lukács, presentes principalmente na obra Para uma ontologia do ser social, Ranieri busca retomar elementos presentes em Hegel (e seu sistema idealista especulativo) que se mostrem proveitosos para uma teoria social mais ampla, atual, consistente e balizada pela crítica marxiana da economia política (materialismo histórico dialético). Diante dos impasses teóricos, éticos e sociopolíticos causados pela permanente crise da modernidade, o autor vislumbra no reencontro com a solidez do pensamento hegeliano a possibilidade de construir respostas mais eloquentes, concretas e propositivas aos desafios do nosso tempo. Devido às simplificações, incompreensões e dificuldades comuns à leitura das obras de Hegel, Ranieri busca, paralelamente, desmistificar a filosofia hegeliana, tanto naquilo que diz respeito ao sistema teórico do real quanto à leitura dos textos de Hegel por terceiros.


O autor promove, para tanto, um minucioso trabalho de estudo das obras de Hegel em sua língua original, acompanhado de textos traduzidos para outros idiomas e de um grupo de estudiosos colaboradores. Ranieri assume que isso resultou na maior ênfase ao tratamento conceitual da teoria de Hegel, restando menos tempo e espaço no livro para a realização de uma acurada análise do pensamento de Marx. Contudo, o amplo conhecimento do autor sobre a produção marxiana não deixa o leitor desamparado nesse sentido em nenhum momento da obra.


O trabalho de Ranieri parece ser tão bem sucedido na salvaguarda da fidelidade a Hegel que o livro ganha, em vários de seus trechos, aquele aspecto labiríntico e hostil à inteligibilidade característico da obra do filósofo alemão, exigindo do leitor a máxima concentração e circunspecção. Como Ranieri discute diretamente conceitos e aprofunda a sua compreensão acerca deles, é requisito para o leitor ter conhecimento acerca do sistema filosófico de Hegel, bem como estar familiarizado com algumas concepções e terminologias. Do contrário, o leitor corre o risco de ficar paralisado diante de discussões complexamente abstratas e acabar por relegar Hegel ao posto do necessário inacessível. Nesse sentido, a obra de Ranieri pode frustrar alguns leitores incautos e ávidos por uma compreensão imediata das coisas, mas é um percurso bastante instigante e engrandecedor a qualquer um que se dedique à sua travessia.


Travessia é movimento. Hegel, certamente marcado pelas revoluções de sua época, inaugura a necessidade da história para a filosofia e coloca tudo em movimento. Trabalho e dialética aborda a relevância da processualidade e do devir para a ciência e a existência humanas. Para Hegel, e consequentemente também para Marx, mais decisivo que o ser é o processo pelo qual esse se reproduz em sua necessidade. Todo o sistema hegeliano se apoia na celebrada dinâmica dialética: tese, antítese e síntese. Dessa forma, a noção de “existência”, por exemplo, traz consigo a sua contradição, seu oposto, a “não existência”. Da explicitação dessa contradição, do encontro dos opostos, forma-se a síntese, no caso “tornar-se”, “vir-a-ser” ou ainda “devir”. Ranieri enfatiza essa compreensão hegeliana do mundo como uma processualidade permanente e, portanto, histórica, que não se permite deter por uma compreensão estática da realidade (diferença fundamental entre Hegel e Kant). Para Hegel, a realidade se põe como resultado necessário de um processo e o conteúdo de seu desenvolvimento só pode ser reconhecido também enquanto processo, ou seja, gênese. Assim, só historicamente é possível ao espírito [Geist], no seu vir-a-ser, saber a si mesmo.



É certo que, cinco séculos antes de Cristo, Heráclito afirmava que todas as coisas transformam-se em seus opostos e que tudo é fluxo, ou seja, que a processualidade é mais decisiva que o ser ou uma essência fixa. Mas é Hegel quem formula mais adequadamente o devir mundano, libertando a nossa compreensão das categorias dicotômicas formuladas pela tradição filosófica anterior (essência e aparência, forma e conteúdo, necessidade e acaso). Kant supôs que as categorias eram logicamente distintas entre si, ou seja, não poderiam ser derivadas umas das outras. Para Hegel, elas são dialéticas, ou seja, estão sempre sujeitas a mudança, são parte de um processo de transformação. Hegel dirá, segundo Ranieri, que “o conteúdo da ‘consciência sensível’ devia ser, em princípio, o puro singular, mas ele (o conteúdo) é dialético, já que força o singular, no seu excluir de si o outro, a referir-se ao outro, depender dele e, assim, ir além de si mesmo.” (p. 54). Assim, Ranieri evidencia que outra grande contribuição de Hegel está nas chamadas determinações-da-reflexão (desenvolvidas na obra Ciência da Lógica) que são justamente a demonstração do trânsito contínuo entre as mencionadas categorias.


O autor do livro também demonstra que para Hegel, embora este submeta o mundo humano às realizações da lógica, a dialética não é um mero movimento do pensamento que prescinde da realidade material. Hegel intui que a atividade é criadora do mundo, ou seja, o ser humano é produtor de si mesmo. A lógica depende da constituição objetiva do real para se constituir. Ranieri afirma que “o empreendimento teórico não pode ajustar-se adequadamente ao real se, nessa adequação, não for respeitado o fato de que a realidade compõe-se de empiria e reflexão” (p.15). O espírito [Geist], conforme sugere Hegel, é a efetivação do conjunto de empiria e reflexão, no movimento processual em que a consciência tem responsabilidade pela transformação do mundo à medida que o incorpora e, nessa incorporação, está sujeita a um processo de objetivação da subjetividade, uma vez que as transformações do mundo levadas a efeito também a suprassumem, pois a fazem diferente daquilo que era anteriormente. Desse modo, o pensamento não pode estar separado do processo verdadeiro de engendramento do real. O autor conclui que o método dialético não pode ser outra coisa que a reconstituição metódica, no plano do pensamento categorial, da gênese concreta da realidade. Neste ponto se fundamentam as principais contribuições do livro para a desmistificação de Hegel.


A obra é divida em cinco capítulos. No primeiro capítulo, Ranieri explicita como a apreensão do real e do verdadeiro é essencialmente mimética, do ponto de vista da realização de um percurso dialético. Explora pormenorizadamente algumas categorias centrais do sistema hegeliano buscando mostrar que para Hegel, o mundo está no ser, assim como o ser também contribui na formação desse universo exterior. O mundo é reconhecível e mutável por meio de uma contínua dissolução e posterior superação das formas mais imediatas de aparição das características de todo fenômeno ao ser social. É o capítulo mais extenso e aquele que exige maior fôlego de leitura.


No segundo capítulo, o autor se debruça sobre os conceitos de alienação [Entäusserung] e estranhamento [Entfremdung], categorias fundamentais para a consolidação do princípio da contradição, buscando explicitar seu papel na formação histórica do espírito e no estabelecimento de sua condição de sujeito. Ranieri diferencia as duas noções e define a relação entre ambas, demonstrando como alienação é exteriorização, objetivação e, portanto, categoria ineliminável da atividade humana (atividade, ação, realização), e que estranhamento é o lógico desdobramento da consciência de si na instauração das objetividades históricas. Esse é o capítulo mais curto, porém, bastante denso e exigente.


O terceiro capítulo revisita a famosa dialética entre senhorio e escravidão, destacando fundamentalmente a relevância do agir humano para o desenvolvimento do ser social. A sagacidade de Hegel fica evidenciada nesse momento do texto de Ranieri quando demonstra a tensão reflexiva entre os dois papéis: o senhor tem uma relação com o mundo distanciada, empobrecida, mediada pelo trabalho do escravo, mas é o possuidor dos produtos; o escravo transforma o mundo pelo trabalho, mas sua relação com a natureza passa pela dominação do senhor e o produto de sua atividade não é seu. É nesse capítulo que fica mais evidente o débito teórico de Ranieri com a interpretação feita por Lukács acerca da categoria trabalho. Esse é outro capítulo que parte de uma análise mais fiel ao texto de Hegel e obriga o leitor a empenhar-se com afinco para a compreensão.


O quarto capítulo é aquele que analisa a apropriação (recepção e refundação) pela teoria marxiana da categoria trabalho como matriz e dinâmica geradora da sociabilidade humana. O essencial da contribuição da filosofia de Hegel para a teoria social de Marx está presente nesse capítulo. Nessa parte da obra se expõe a concepção de Hegel acerca do trabalho e da atividade humana no processo de engendramento do real, bem como sua compreensão da filosofia como unidade sistemática entre consciência e materialidade. Segundo Ranieri, a profundidade da intuição hegeliana gestou o que há de mais sofisticado e pertinente no conteúdo do materialismo, a noção de que no cerne da atividade humana está a substância para a compreensão de todos os elementos constituintes de nossa existência. O trabalho é meio para a satisfação das necessidades humanas e somente no interior dessa satisfação é que se torna possível à sociabilidade avançar. A problemática do trabalho é, dessa maneira, a problemática do fundante reconhecimento: o princípio reflexivo do ser-relativo-a-outro. Esse capítulo é de leitura menos complicada e configura-se como central a toda discussão realizada pelo livro. Nele, Ranieri estabelece o quão fundamental é o retorno às reflexões de Hegel e Lukács acerca da categoria trabalho para uma crítica do capital sob o ponto de vista da emancipação humana.


No último capítulo, o autor traz à analise os Grundrisse, evidenciando a instrumentalização da metodologia de Hegel feita por Marx para uma crítica materialista e dialética da economia política, expondo o percurso do capital em sua relação com o trabalho. Nesse capítulo de análise dos ditos manuscritos preparatórios e ainda “inadequados” de Marx, são melhor tratadas as principais categorias econômicas de Marx. Ficam claras nesse texto tanto as dívidas de Marx com a teoria e metodologia dialética de Hegel, como as críticas, distanciamentos e superações do pensador de Trier em relação ao filósofo de Jena.


Marx foi um feroz crítico de Hegel. Não um crítico aos moldes de Schopenhauer e de tantos outros que se negaram a enfrentar o estudo sistemático e criterioso daquele que chamaram anedoticamente de “o mais mastodôntico sistema filosófico que o ser humano conheceu”. Mas um crítico que assimilou as ideias hegelianas em diversos aspectos e as superou em vários outros. Marx defendeu que a consciência é o produto tardio e não o demiurgo do conjunto das elaborações que a atividade do ser social funda. Marx criticou o sistema de Hegel por não problematizar adequadamente as contradições materiais do progresso humano, mas apenas as envolver no universo da lógica. Em Hegel, a predominância lógica obscurece o plano realmente fundante estabelecido pela relação entre ser humano e natureza: o trabalho. O livro de Ranieri deixa isso claro.


A importância de Trabalho e Dialética está na atualidade e relevância das contribuições de Hegel, Marx e Lukács tanto como meio de compreensão de nossa realidade, como um instrumento teórico para enfrentamento dos dilemas e impasses que enredam a contemporaneidade sociopolítica. A obra nos ajuda a compreender o estatuto e a função da categoria trabalho (que é entendida como a principal obra da cultura) na formação da consciência: esta tanto forma o mundo como é permanentemente transformada por seu próprio produto. Em Trabalho e Dialética: Hegel, Marx e a teoria social do devir, o estudioso encontrará uma prévia da complexidade das sistematizações hegelianas, mas igualmente as provas da solidez teórica que os grandes filósofos alemães deixaram para a humanidade como herança. É uma leitura que vale a pena ser feita com calma e acompanhada por outros especialistas. É uma obra intelectualmente instigadora que inevitavelmente leva os seus leitores às leituras dos clássicos nela estudados.



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2 komentáře


cyntia.souza
09. 11. 2018

Excelente trabalho André!! Este texto nos remete a reflexões mais que necessárias, principalmente no contexto conturbado de relações socais em que estamos vivendo...

To se mi líbí

Angélica Marques
Angélica Marques
08. 11. 2018

Nossa, muito boa a sua resenha. É esclarecedora e honesta. Destaco um trecho que considero interessante, porque, ao meu ver, revela bastante do que somos enquanto sociedade:

"Segundo Ranieri, a profundidade da intuição hegeliana gestou o que há de mais sofisticado e pertinente no conteúdo do materialismo, a noção de que no cerne da atividade humana está a substância para a compreensão de todos os elementos constituintes de nossa existência. O trabalho é meio para a satisfação das necessidades humanas e somente no interior dessa satisfação é que se torna possível à sociabilidade avançar. "


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