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Foto do escritorAndré Hope

Deveríamos dedicar menos tempo ao trabalho?

Breves reflexões acerca de discursos sobre trabalho e descanso, considerando ideias de Karl Marx e concepções presentes em uma reportagem publicada pela BBC News Brasil.


Ilustração de JOHN HOLCROFT

A concepção de trabalho proposta por Marx e Engels é muito mais ampla e marcadamente distinta em relação à noção de trabalho latente na reportagem da BBC News Brasil. Enquanto a matéria jornalística restringe a ideia de trabalho ao fenômeno do emprego, à mera atividade produtiva que visa remuneração, para Marx, trabalho é algo bem mais significativo e intrínseco ao ser humano, é a categoria central de seu sistema teórico-filosófico e abarca a própria gênese da humanidade. 


Marx não fala ao mundo observando apenas a superficialidade dos fenômenos de sua época, como faz a reportagem, mas procura entender a raiz mais profunda e real da humanidade. Desse modo, compreende o ser humano como um animal (natural e objetivo) prático (ativo) e social (relacional) que, antes de qualquer coisa, necessita da materialidade (natureza) para realizar a sua existência enquanto tal. É por meio do trabalho, atividade consciente e livre de transformação da natureza com a intencionalidade de satisfazer suas necessidades e alcançar um resultado planejado, que o ser humano produz a sua existência, o seu mundo e a sua própria humanização. O trabalho permite ao ser humano dar um salto da mera existência orgânica, como os demais animais, à sociabilidade. Toda a história do ser humano consiste nesse processo através do qual ele transforma a natureza sucessivamente e, consequentemente, transforma a si mesmo, humanizando-se. 

Contudo, além desse caráter positivo de (auto)realização do ser humano que o trabalho contém, Marx expõe igualmente o caráter negativo que o trabalho encerra, analisando o mundo capitalista, onde o trabalho se torna elemento subordinado ao capital, atividade de sacrifício e mortificação do ser humano, cuja expressão máxima se revela na perda do resultado do trabalho e do próprio ato da produção, no qual o homem se sente fora de si, e é isto que a reportagem, sem pretendê-lo, também nos revela. 

Diz a neurocientista na reportagem: "quando você não consegue relacionar suas ações a uma causa maior, ao longo do tempo elas irão parecer sem propósito, vazias e não conectadas com seu 'eu' mais amplo. E, ao longo do tempo, não ter um propósito está relacionado a não ter saúde psicológica e fisiológica ideais". A alienação, o estranhamento, sobre os quais falava Marx, surgem como evidências neurocientíficas, em suas consequências práticas. O ser humano não se reconhece no que faz e, perdendo-se de si mesmo, adoece. 

Marx afirmava nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844: "O trabalhador, assim, só é ele próprio quando não trabalha, e no seu trabalho sente-se fora de si próprio. O seu trabalho, por isso, não é voluntário, mas forçado. Não é a satisfação de uma necessidade, mas somente uma forma de gratificar a necessidade de outrem".

Acontece que, no sistema capitalista, até mesmo o descanso e o tempo livre só encontram legitimidade e razão de existir se forem para o aumento da produção. Entre o dolce far niente e o karoshi, no capitalismo sempre valerá tudo, independentemente da realização ou da morte do ser humano, desde que seja a melhor forma de se aumentarem a produtividade e as riquezas materiais.

Na reportagem, não são questionadas as relações de produção que exploram o ser humano além de suas possibilidades. Apenas se busca trazer a agradável novidade: produzir mais exige humanizar o ser humano. Mas só se humaniza se isso for técnica para tornar o sistema mais lucrativo. A instrumentalização e coisificação do ser humano sempre se reinventam e buscam dominar o ser humano por completo. Quando alguém estiver descansando, quando estiver fazendo "nada", ainda assim o deverá fazer para ser mais produtivo, jamais por simplesmente ser humano.

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4 comentários


cyntia.souza
09 de nov. de 2018

Este texto nos convida a refletir sobre a necessidade de humanizar a nossa jornada de trabalho, através de dados relevantes de pesquisas em países distintos, entendendo que o descanso, o lazer, o fazer menos estão diretamente relacionados ao aumento da produtividade laboral. Porém não acatada por muitos, inclusive pelo sistema capitalista de produção, o qual estimula o aumento da carga horária de trabalho diariamente, objetivando acúmulo de capital e disseminando a ideia de que quanto mais horas se trabalha, mais produtivo se é e consequentemente as aquisições de bens matérias pela classe trabalhadora se torna possível. De acordo com Marx o proletariado tem que vender a sua mão de obra para os burgueses. Estes, segundo o marxismo histórico, sempre v…

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Eliene do Carmo Santos Nunes
Eliene do Carmo Santos Nunes
02 de nov. de 2018

Esta imagem que você postou diz muito! Vendemos nossa força de trabalho, nosso tempo livre e nosso descanso em prol de uma pequena parcela da humanidade cercada de privilégios.


" Eu ainda preciso de mais descanso saudável para trabalhar no meu máximo. Minha saúde é meu capital principal e eu tenho e quero administrá-la inteligentemente”. (Ernest Hemingway)

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Elder Brito
Elder Brito
18 de out. de 2018

Primeiramente meus parabéns pelo site/blogger! Boa reflexão sobre os ensinamentos de Marx e Engels. Como pode o nosso tempo limitado de vida ser surrupiado com muitas vezes com o nosso aval? a legitimidade do sistema capitalista que você aborda, encontra aresta para nos explorar em várias perspectivas, seja pela mão de obra ou alimentando o consumerismo, porque enquanto um trabalha o outro descansa comprando, gerando um ciclo vicioso e o tempo não para.

É bem verdade que a tecnologia trás comodidade, mas vem acompanhada de mais facilidades para continuarmos no trabalho mesmo quando estamos em casa em nosso momento de repouso.

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Marcela Brito
Marcela Brito
15 de out. de 2018

Olá, André! Esse é o eterno dilema da vida contemporânea. Trabalhamos muito e estamos deixando a vida escorrer pelas mãos. Eu, particularmente, penso constantemente no que estou fazendo com minhas vivências e o quanto elas impactam a vida das pessoas que eu mais amo.

Nosso sistema é cíclico e entre um período e outro entra em colapso para nos mostrar que ele não é pleno e não atende nossas necessidades como seres humanos, como seres que necessitam de relações sociais mais humanizadas, mais pautadas na afetividade.

Ter a oportunidade de ler os teóricos das bases conceituais em EPT é um grande privilégio, pois podemos pensar juntos de que maneira nos encaixamos nesse contexto e de que forma podemos contribuir para…

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